Interlúdio I: Os Cinco através da porta

            Apesar de suas dimensões colossais, a Porta Ornamentada escancarou-se sem esforço quando empurramos. De tão imensa, olhar para cima e vê-la abrindo chegava a causar vertigem; parecia que o mundo inteiro movia-se com ela. Uma porta daquele tamanho, em uma torre daquele tamanho… Que tipo de seres entrariam e sairiam por ela? O que nos aguardava no interior? Segundo a lenda, os gigantes haviam sido dizimados por cavaleiros brammaccios em uma Era passada, e eu, que sempre analisei mitos com a lupa do ceticismo, agarrava-me à lenda para ludibriar minha apreensão, enquanto adentrávamos a penumbra. Tão apreensivo que me sobressaltei quando a mão de Mijbar pousou em meu ombro.

            – Reconheço este olhar, Zacarias – declarou o elfo do sol. – O que te preocupa?

            – Não é nada – respondi, tentando disfarçar minha expressão invocando um sorriso ao rosto.

            – Fique tranquilo! – disse ele. – Tem o Campeão de Cereleste contigo.

             Não havia qualquer sinal de Vriitja do lado de dentro. Em verdade, não havia sinal de qualquer coisa, nem mesmo paredes; nem mesmo o chão! A luz que vinha da entrada permitia ver que o piso no qual caminhávamos cobria menos que a metade da extensão da torre, como uma sacada sem parapeito. Havia uma escada em cada extremidade da plataforma em que nos encontrávamos, ambas espiralando pela parede da torre; uma em direção ao topo, a outra em direção ao fundo. Mijbar e Sandrine encaminharam-se para borda, olhando para baixo e para cima, porventura tentando ver até onde iam as escadas. Notei que Trûr ainda estava à porta, apoiado em seu martelo como fosse uma bengala e coçando sua densa barba ruiva, enquanto observava fixamente as dobradiças.

            – Trûr? – chamei. – Você vem?

            – Há quanto tempo você acha que este lugar está abandonado? – perguntou ele, sem desviar o olhar um minuto.

            Estranhei a pergunta repentina e cogitei o que o rei dos anões teria reparado, que escapara a todos nós.

            – A julgar pela poeira, muito tempo, eu diria – respondi. – Por quê?

            – As dobradiças. Em perfeito estado. Nenhum sinal de ferrugem – explicou ele. – Na porta, tampouco.

            – Bem, não sou um especialista no assunto, mas, até onde sei, ouro não enferruja. Estou enganado?

            Trûr mirou minha direção como se eu houvesse acabado de dizer uma estupidez ofensiva. Suspendeu o martelo-de-guerra e apoiou-o sobre um ombro.

            – Isto não é ouro. Sim, é dourado, mas não é ouro. Eu não sei o que é, nunca vi este metal antes – disse ele, passando por mim. – Então, para onde foi o maldito elfo da lua? Para cima ou para baixo?

            Sandrine meneou a cabeça.

            – Não dá para ver nada daqui. Parece um fosso, não vejo outros andares – disse A Barda. – Talvez as escadas levem direto ao topo e ao fundo da torre.

            – Acredito em você, barda – afirmou Trûr, de uma distância segura da borda.

            Percebendo isto, Mijbar soltou uma risada, com as mãos na cintura.

            – Não creio. O grande Trûr Imir com medo de altura? – caçoou ele.

            – Cale sua boca, elfo. Eu sou um anão. Vivo embaixo da terra. Não acima dela.

            – Colegas – interrompi a altercação –, vamos manter nosso objetivo em foco. Temos de achar o Livro e, antes disso, também nosso companheiro. O sol já está se pondo lá fora. Logo ficaremos sem luz. Sugiro que decidamos qual escada tomar.

            – Zac está certo, como sempre. Vamos votar! – propôs Sandrine.

            Trûr baixou a mochila ao chão, tirou uma estaca e começou a enrolar um trapo na ponta.

            – Vocês façam isso. Eu farei uma tocha – disse ele. – Por mim, tanto faz a escada. Só não quero perder mais tempo.

            Por mais rabugento que soasse, eu percebia a maneira de Trûr demonstrar sua consideração. O gesto em preparar a tocha era um bom exemplo; foi pensando em nós três que se deu a este trabalho, uma vez que os anões de Tertiera enxergam no escuro.

            – Eu voto que comecemos por baixo – anunciou Sandrine. – Como Trûr, Vriitja também vem do subterrâneo. Acho que ele desceria primeiro.

            – Muito perspicaz, jovem Sandrine – eu concordei. – Cuido que você tem razão em seu argumento. E meu voto.

            Faltava Mijbar. Embora aqueles dois votos e a abstenção de Trûr já determinassem o caminho a seguir, se O Guerreiro votasse contrário, tinha direito a sua argumentação. Assim funcionavam as tomadas de decisões d’Os Cinco, uma prática que eu trouxera da Sociedade Exotérica. Sandrine e eu olhamos para Mijbar, de pé à beira do fosso; parecia pensativo, uma mão segurando o queixo, a outra sobre o pomo da espada na cintura.

            – Mijbar? – chamei. – Seu voto, companheiro?

            – Oh, para cima. Eu voto para cima, é claro. Não pelo assassino. Unicamente por ser a direção do sol e do céu – disse ele, virando-se. – Vriitja nasceu e cresceu em Tertiera, é verdade, querida barda. Mas, desde que abandonou o modo de vida lunar, vive na superfície. Não que isso apague a imprevisibilidade que herdou dos seus. O caos corre em suas veias. Dito isto, como analisar seus atos pelo viés da lógica? Somos uma equipe, mas ele ainda prefere operar sozinho. Não à toa entrou na frente, sem qualquer aviso. Não me parece sensato decidirmos baseados nas ações dele. Concordam?

            Um princípio de noite cobria o mundo lá fora; a luz do sol minguava, mal entrando pela porta do recinto, que aos poucos era tomado pelas sombras. Apesar da fraca iluminação, percebi claramente quando os olhos citrínicos de Mijbar cintilaram, apontados para a jovem barda.

            – Concorda, Sandrine? – inquiriu ele.

            Olhei para ela. Sob o olhar do Campeão de Cereleste, Sandrine pareceu perdida por um breve instante, depois enrubesceu, coisa que tentou disfarçar mexendo no cabelo. A forma como Sandrine passou a avistar o elfo então, como que fascinada, enfeitiçada…

            – É, acho que Mijbar tem razão – concordou ela. – Quero mudar meu voto. Talvez seja melhor subirmos mesmo.

            – Eu discordo de você, Mijbar – intervi. – Vriitja prefere operar sozinho, sim, mas sempre em nome da equipe. Geralmente se colocando em risco para que nenhum de nós precise arriscar-se. E, creio eu, está fazendo isso agora. Quantas vezes não nos salvou de…

            A ponta da tocha de Trûr, segurada diante de mim pelo anão, cortou meu discurso e raciocínio.

            – Acenda isto, mago – comandou ele.

            Aproximei um indicador dos trapos agora besuntados de óleo; com um pensamento, gerei uma pequena faísca e a tocha acendeu-se. O Clérigo ergueu-a acima da cabeça e iniciou a subida dos degraus, rumo ao topo.

            – Chega de conversa. Votação concluída – disse ele, impaciente. – Para cima!

            Sandrine seguiu atrás do anão. Antes que Mijbar seguisse também, segurei-o pelo braço. O gesto pareceu surpreendê-lo; ele puxou seu braço e encarou-me inquisitivamente.

            – Eu sei o que você fez – eu disse. – Não posso dizer que aprovo.

            – Não sei do que está falando, Zacarias.

            – Você sabe, sim – confrontei-o. – Você usou seu glamour na Sandrine, para alterar seu voto. Eu percebi, Mijbar. O jeito como ela te olhou…

            – Não seja tolo. Todo bardo olha para elfos assim – ele contra-argumentou, cruzando os braços.

            – Mijbar, você é nosso líder, mas não dessa forma. Conquista-se a liderança pela prudência, pela confiança, pelas boas ideias, não pela manipulação e nunca pela força – eu arrazoei. – Forçar sua vontade em outrem não te torna um líder, torna-te um tirano.

            A expressão de Mijbar azedou; seus olhos cravaram em mim como dois dardos de gelo. Reconheci o desdém em sua voz quando disse, pausadamente:

            – Zacarias, torno a dizer, não sei do que está falando.

            – Ei, vocês! – gritou Sandrine da escada. – Andem logo!

            – Deixem a fofoca para depois! – emendou Trûr.

            Mijbar indicou nossos companheiros com uma mão.

            – Vamos? Nossos amigos esperam por nós – disse ele.

            – Não terminamos. Continuaremos o assunto mais tarde – insisti, mas fui ignorado.

            Aquela novidade foi aterradora para mim e não posso negar que abalou a confiança que depositava em nosso líder. Porque a pergunta fatal e inevitável martelava dentro de minha cabeça: terá Mijbar usado do glamour outras vezes em Sandrine ou qualquer um de nós? Quantas vezes teríamos obedecido sua vontade, acreditando tratar-se da nossa própria? A desconfiança era agravada pela mentira. Eu vi o brilho dourado em seus olhos, testemunhei as mudanças em Sandrine, e mesmo assim ele negou tudo. Como pôde? Justo ele, quem eu tinha em alta conta; um campeão! Talvez este tenha sido o primeiro sinal de que Os Cinco, enquanto grupo, estava se deteriorando. Talvez este tenha sido o primeiro sinal do fim.

            Pobre Sandrine. Enquanto subíamos, eu a observava ao lado de Mijbar, completamente alheia ao que havia transcorrido. Às vezes ela lembrava-me minha irmã mais nova, a quem eu não via há muitos anos. Quem sabe por esta razão eu fora arrebatado por aquela necessidade de protegê-la. Quem sabe.

            Subimos calados os quatro; somente os resmungos periódicos de Trûr quebravam o silêncio de quando em quando. A escada era interminável e parecia mesmo subir direto até o terraço; não havia outros andares na torre além do térreo. A ausência de janelas para ver a posição da lua e das estrelas impedia-nos de calcular o número exato de horas que passamos galgando os degraus; eu supunha que não menos do que duas. Não encontramos qualquer vestígio de Vriitja – nem dele, nem de ninguém. Conforme previsto, o Templo Perdido de Illuri estava vazio. Uma dúvida, que até então não me ocorrera, veio assombrar-me: a possibilidade do que buscávamos sequer estar lá. E se o Livro dos Tempos fosse somente uma lenda?

            Em dado momento, notando como os degraus infindos exauriram-nos e que nosso ritmo degradara consideravelmente, Sandrine começou a tocar sua cítola a fim de motivar-nos com sua música. Mas A Barda, também ela cansada da viagem e da subida, não conseguia exprimir no instrumento a animação que não sentia verdadeiramente. Decidi que era hora de uma intervenção mágica. Não chegamos até ali para sermos derrotados por uma escada.

            – Amigos, já chega. Estamos desperdiçando nossa preciosa energia nessa subida sem fim. Não há necessidade dos quatro desgastarem-se, quando um só basta – anunciei. – A partir daqui, eu nos levo ao topo.

            – E como você propõe fazer isso, mago? – perguntou Trûr.

            – Com minha magia – respondi. – Um encantamento, para ser mais preciso.

            O rei dos anões estalou a língua e resmungou, indicando que não apoiava aquele plano.

            – Sei não, Zacarias – disse ele, cismado. – Não sabemos o que vem pela frente. E se precisarmos de sua magia depois? No seu lugar, eu pouparia energia.

            – Entendo sua preocupação, rei Trûr, e compartilho de seu ponto de vista – eu disse. – No entanto, estou gastando energia de qualquer modo, subindo a pé. Confesso que não esperava que a escada fosse tão longa.

            – É, nem eu – concordou Sandrine, sentando-se em um degrau.

            – Eu ainda tenho algumas frutonniäs. Energia não nos faltará – afirmou Mijbar. – Qual é o plano, Zacarias?

            – Disco Translocador. Um encantamento que temporariamente transforma energia mágica em matéria, na forma de um disco que se desloca em qualquer direção. No nosso caso, para cima, conosco sobre ele – eu expliquei e confesso que acabei divagando além do necessário na explicação do conceito arcano. – É uma magia avançada, de uma escola moderna; a escola Material, ou Transmutacionismo, o extremo oposto da escola Mental, ou Ilusionismo. Em suma, o concreto em oposição ao abstrato.

            – Ninguém entendeu nada, mago – grunhiu Trûr. – O que quero saber é se tem energia suficiente em você para este feito.

            – Trûr está com medo de cair – brincou Mijbar.

            O rei dos anões apontou um indicador ameaçadoramente para o elfo, depois se voltou para mim, esperando meu esclarecimento.

            – Não deve faltar tanto para o topo. Fiquem tranquilos, amigos, tenho energia suficiente para transportar-nos, e ainda sobra. Lembrem-se: sou um Arquimago. Estão prontos?

            Acheguei-me da beira dos degraus, de frente para o fosso e, sem olhar para baixo, iniciei a canalização da energia. Afastei os braços, desenhando uma meia lua no ar, e fechei os dedos das mãos, como que a segurando. Senti minha energia arcana deixando meu corpo em pequenas ondas e interligando meus membros superiores até aparecer o formato de um meio-disco em minhas mãos. Murmurei os versos de poder:

            – Aqii dalma nivriaste disca translossectum.

            O meio-disco, então, expandiu-se e desdobrou-se, tornando-se um disco completo. Um círculo feito de raios alaranjados e arroxeados, com três passos de diâmetro. Posicionei-o no precipício diante de mim, na horizontal, e soltei-o; ele ficou levitando suavemente. Estiquei ambas as mãos em torno dele, uma por cima, a outra por baixo, e toquei-o com as pontas dos indicadores. O disco reluziu, vibrou e adquiriu solidez; energia transmutada em matéria.

            – Todos a bordo da nau Estrelada! – falei em tom jocoso, tentando refrescar os ânimos.

            Tão logo trepamos no disco, de pé em seu centro e de costas uns para os outros, dei a ordem para subir:

            – Elevatuo!

            Nosso elevador mágico iniciou a subida. Eu mantinha as palmas das mãos viradas para baixo, canalizando minha energia para dentro do disco, de modo a manter sua integridade material; se minha concentração fosse interrompida ou se minha energia esgotasse, cairíamos. A tocha do anão mal iluminava ao nosso redor, o que dificultava saber o quanto estávamos avançando, contudo, algo dentro de mim dizia que faltava pouco.

            – Pela barba do Ferreiro! – exclamou Trûr, quando se atreveu a olhar para baixo e viu nada além do breu do abismo.

            Passados uns trinta minutos, conseguimos distinguir um teto ficando cada vez mais próximo. Estávamos chegando; não sabíamos onde, mas a algum lugar. O fosso terminava em um pavimento como o térreo, apenas um piso cobrindo um terço da circunferência da torre. Neste andar também nada havia além da escada, que continuava subindo para o terraço. Quando o Disco Translocador nivelou com o chão, ordenei que parasse:

            – Imobilitas!

            Trûr foi o primeiro a descer e, diga-se de passagem, desceu bem depressa. Não apenas por seu desassossego em relação a altitudes, nem por preocupação com nosso colega desaparecido; era o Livro. O Livro agravava sua impaciência característica; Trûr tinha pressa. Imagino o peso que aquela missão possuía para o monarca; ele não podia retornar para Imiru de mãos vazias. Tinha de levar um prêmio para justificar sua ausência a um reino abandonado por seu rei há mais de um ano. Some a isso o agravante de ser também um líder religioso, um sacerdote do Ferreiro – um clérigo –, o que tornava aquela uma missão religiosa para ele e seus súditos.

            Ao descermos os quatro, interrompi o fluxo de energia mágica ao encantamento; o disco rapidamente tornou-se imaterial e desapareceu. Subimos o último lance de degraus e, assim que saímos no terraço, fomos brindados com a visão de um céu noturno limpo e repleto de estrelas. Eu sorri ao notar a coincidência com meu posto: Estrelado. O vento uivante sacudia nossos cabelos e roupas e acabou por apagar nossa tocha. Felizmente, ela já não era necessária, graças a uma lua crescente que jorrava seu intenso brilho prateado sobre nós. E sob a luz da lua, observamos perplexos o que havia ali. Porque não foi Vriitja que encontramos e tampouco o Livro dos Tempos.

            Em uma extremidade, exatamente acima de onde ficava o fosso no andar de baixo, havia um enorme trono feito do mesmo mineral verde que a torre. Na verdade, o trono era parte da torre, crescia dela; não havia separação entre os dois, eram uma coisa só. Era como se houvessem esculpido um assento no topo de uma gigantesca montanha de quartzo verde e depois, abaixo dele, talhado a montanha até adquirir forma cilíndrica. Apesar de seu tamanho avantajado, o trono possuía um desenho simples e sem enfeites: um encosto alto, apoios para os braços e um assento plano.

            Isto não era tudo. Espalhados ao redor do trono, havia cinco objetos caídos, como que largados a esmo no chão: uma luva metálica, uma esfera furta-cor, um bracelete adornado, uma lira dourada e uma espada aparentemente feita do mesmo material que a torre. Eu não fazia ideia do que se tratavam aqueles itens; nenhum de nós fazia. Não tínhamos noção de que estávamos diante das peças que reformulariam o destino do mundo. Para sempre.

            – Não toquem em nada – aconselhei. – Até que entendamos melhor com o que estamos lidando.

            – O que são? – perguntou Trûr. – Cadê o Livro?

            – Eu não sei. Para ambas as perguntas – admiti. – Mas gostaria de saber.

            – Bela espada – comentou Mijbar com fingido desinteresse, dando uma olhadela de passagem, dirigindo-se à borda do terraço. – Nossa, é tão alto que não consigo ver nada lá embaixo. Esta torre deve ser mais alta que a própria Niniä.

            – Gostei do trono! – exclamou Sandrine, rodeando-o.

            Dei uma olhada a nossa volta. Onde estava Vriitja? Agora era patente que ele não viera cá para cima. Antes houvéssemos descido, conforme inicialmente deliberado. Meu olhar encontrou Mijbar à beira da torre, de costas para nós. Conhecendo-o como eu conhecia, cuido que se afastara justamente por dar-se conta da decisão errada que tomara. O campeão estava envergonhado e era vaidoso demais para assumir seu erro.

            – Olhem para mim! – ouvi Sandrine bradar atrás mim. – Sou uma rainha!

            Virei-me e achei A Barda balançando as pernas, sentada no trono, que de tão imenso não permitia que seus pés tocassem o chão. E eu não sei dizer exatamente o porquê, mas gelei por dentro.

            – Sandrine! O que está fazendo? – gritei. – Saia daí! Pode haver uma armadilha!

            – Tem, não! Já olhei!

            – Sandrine, por favor! Não sabemos o que são essas coisas!

            – Calma, Zac. Eu hein! Só estou descansando as pernas um pouco antes da gente descer.

            Descer.

            No exato momento em que Sandrine proferiu este verbo, como que respondendo a um comando de voz, todo o terraço estremeceu e a área em torno do trono desencaixou-se do resto do piso. E começou a descer. Comigo, com Trûr, com Sandrine sobre o trono e com os cinco objetos desconhecidos.

            – O que está havendo? – ouvi Trûr berrar. – Pelo Ferreiro! Estamos caindo!

            – Segurem-se! – esbravejei.

            – Mijbar! – Sandrine chamou.

            Mijbar havia ficado. Quando a plataforma começou a descender, O Guerreiro estava afastado, na beirada da torre. Ainda o vi disparar em nossa direção, em resposta ao chamado de Sandrine, antes de afundarmos sob o pavimento do terraço e principiarmos fosso abaixo. Arrisquei uma olhada para cima e, por um breve segundo, somente a lua e as estrelas olharam de volta e pareceu que nossa trupe se perderia de outro membro. Mas só por um breve segundo. Ao fim deste, o elfo solar surgiu no buraco, saltando para dentro e atirando-se insensata e impetuosamente sobre a parte mais alta da plataforma: o encosto do trono, no qual conseguiu agarrar-se, sem dúvida devido à sua agilidade élfica. A coragem e a imprudência muitas vezes andam de mãos dadas. Mijbar estava conosco e estava a salvo.

            Quanto mais descia pelo fosso, mais a plataforma adquiria velocidade. Tão rápida que logo a distância impediu que a luz da lua chegasse até nós e tudo o que restou dela foi um pontinho luminoso lá no alto. Encontrávamo-nos outra vez imersos na escuridão. O frio na barriga era a única prova que tínhamos de que ainda estávamos caindo. Caíamos rumo ao fundo e eu soube: caso nos chocássemos contra o chão, naquela velocidade, morreríamos os quatros ali, sem jamais ter chegado à Verdade que nos impelira naquela aventura. Eu quis conjurar uma magia, um feitiço ou um encantamento, que pudesse suavizar nossa queda ou parar o elevador, mas minha mente estava em todo lugar e em lugar nenhum; impossível focar, impossível canalizar energia mágica. Eu pensava no grandioso e revolucionário projeto que nós, Os Cinco, incumbíramo-nos; nada menos que desvendar a Verdade sobre tudo o que há. Pensava nos planos que nós, Arquimagos, engendráramos para Etéria; planos que seriam colocados em prática sem mim. Pensava na minha irmã e em Álgida. Pensava nos alunos que deixaria para trás, nas lições não terminadas e nos meus estudos inacabados. E, sobretudo, pensava em Jeremias…

            Era duro acreditar que não ouviria mais sua voz. E mais duro ainda ter ciência que a última coisa que ouviria seriam os palavrões urrados por Trûr ao longo de toda a queda. Secretamente, fiz um juramento para mim mesmo: se sobrevivesse a mais esta intempérie, seria a última. Acabou. Era o fim. Eu estava velho demais para as emoções da vida aventureira. Por mais que nós cinco houvéssemos decidido e até anunciado publicamente que aquela seria nossa missão final, após a qual nos aposentaríamos, eu tinha certeza que a realidade seria bem diferente. Tinha certeza que dentro de um mês, ou quem sabe até menos, Sandrine ou Mijbar apareceriam com uma ideia brilhante, que envolveria uma árdua jornada em busca de um objetivo inalcançável. E lá iríamos nós, outra vez na estrada.

            Não, já chega. Acabou.

            Quando tudo parecia perdido e estes pensamentos pessimistas dominavam-me, dei-me conta que a plataforma estava desacelerando. Estávamos parando? Chegáramos ao fundo da torre? Sem qualquer mecanismo de cabos, só podia supor que magia operava o elevador. Mas magia de quem? De onde vinha a energia mágica? Quando finalmente paramos, Mijbar pôde soltar de cima do trono; caiu de pé junto a nós. Sandrine ergueu-se rapidamente do assento e também saltou para baixo. Eu respirei fundo, tentando recobrar o equilíbrio, e, com a mente menos turbulenta, fui capaz de invocar uma Luminária Arcana a fim de prover iluminação, agora que a tocha ficara no terraço. Trûr, contudo, não parecia haver-se dado conta de que estacionáramos e, agarrado a um braço do trono, continuava gritando palavras que rimavam com baralho, cerda e masmorra, as quais optarei por não repetir aqui.

            – Calma, Trutru, tá tudo bem – disse Sandrine, abaixando-se junto ao anão. – Nós já chegamos, pode abrir os olhos.

            Trûr, enfim, abriu os olhos, bem arregalados e vermelhos de raiva. Apanhou seu martelo do chão, onde o havia deixado cair para segurar-se, e avançou contra Sandrine.

            – Barda desgraçada, eu te mato! Você causou isso! Sempre você!

            – Trûr, acalme-se! – supliquei. – Volte a si, rei de Imir!

            Já presenciáramos os acessos de fúria de Trûr antes e sabíamos que ele não a atacaria de fato. Para liberar sua ira, atacou outras coisas; primeiro o trono, depois a própria plataforma. O golpe contra o trono sequer deixou uma marca, nem um arranhão; já o golpe contra a plataforma… Devido à luz fraca, Trûr não enxergou onde estava batendo e seu martelo-de-guerra acertou em cheio na esfera furta-cor. Ao chocarem-se, houve um clarão multicolorido, Trûr foi arremessado para trás, tombando de costas no chão, e seu martelo saiu voando de suas mãos, caindo a vários metros de distância. Por alguma razão, a esfera iluminou-se. O impacto a pôs a rolar para fora da plataforma e continuou rolando pelo chão do recinto, iluminando seu caminho. Talvez meus companheiros não tenham notado um detalhe facilmente despercebido por olhos destreinados: a luz que aquele orbe emitia era, com efeito, uma Luminária Arcana, de dimensões e intensidade idênticas à minha. Teria a esfera conjurado um encantamento? Ou ainda mais absurdo: teria copiado o meu?

            Enquanto Mijbar e Sandrine ajudavam Trûr a colocar-se de pé, segui com o olhar o orbe resplandecente rolando para longe até bater contra um obstáculo; uma capa. A capa d’O Assassino. Lá estava ele, Vriitja, de pé e debruçado sobre um pedestal, revelados pela luz do orbe. Em cima do pedestal e sob escrutínio do elfo, havia um livro aberto, tão grosso que, fechado, devia ter um palmo de espessura, se não mais. Vriitja, que, como Trûr, não tinha nenhum problema em enxergar no escuro, estava tão absorto na leitura que não esboçou qualquer reação à nossa chegada; continuou lendo, como que hipnotizado pelo que lia, ao ponto de não conseguir parar.

            Trocamos um olhar entre nós quatro e aproximamo-nos dele. A cada passo, a luz que emanava do globo alongava nossas sombras atrás de nós. Desfiz minha Luminária e interpelei nosso companheiro:

            – Vriitja? – chamei. – Nós procurávamos por você. O que é isso? É o…? O que está lendo?

            Só então o elfo da lua ergueu sua cabeça, lentamente, como se pesasse sobre seus ombros. Sem olhar para trás, respondeu em seu usual baixo tom de voz, quase um sussurro:

            – A Verdade.

            E, baixando novamente a cabeça, continuou a ler.

– Trecho do manuscrito original jamais publicado da continuação
de Os Cinco de Illuria, escrito por Zacarias Estrelado.

Vriitja está diante do pedestal com o Livro dos Tempos, Sandrine, Mijbar, Trûr e Zacarias cercam o pedestal. Ao centro, o Orbe Mágico emite luz.

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